Minha Existência


Por que diabos terminamos desse jeito? – ia falando comigo mesmo enquanto subia o último lance de escadas.
Cris estava parada à porta de nosso apartamento. Aproximei-me receoso, pois a briga que tivemos dois dias atrás havia sido feia. Ela, por sua vez, fez pouco da minha presença. Além disso, mantinha o olhar longínquo, meio que perdido, algo que imediatamente notei. Era um velar amargurado que me trespassava e morria nalgum canto dentro dela; senti que me fitava sem realmente me ver.
Confesso que fiquei ali, inerte, observando-a com estranheza... admirando-a com a alma calada. Porém, a saudade era tanta que doía; havia muito de mim naquela mulher, mais dos que as palavras são capazes de exprimir. Em verdade, aguardava algum gesto dela, o menor que fosse. Mas, nada... Que me xingasse, desejei então. Que gritasse comigo! Eu sei lá. Ora, que não me tratasse como a um estranho! Eu que só ansiava por abraçá-la, terminar com esta briga boba, edificada pelo ciúme noite dessas. Aliás, não sei se me roía mais a saudade ou a indiferença ali. Diante de Cristiane, sentia-me como a um menino travesso a espera de ser repreendido pelas molecagens que faz.
Finalmente algum gesto, pois ela meneou a cabeça, enquanto suas mãos trêmulas lhe revelavam o estado emocional; achava-se furiosa, como nunca antes a vi. Hesitei. Talvez não fosse ainda o momento de lhe dizer o que quer que fosse. Seguiu-se um suspiro dela, leve e curto, depois outro longo e profundo. E nenhum outro movimento além, algo que já começava a me angustiar.
De súbito, dei-me conta de que o jornal matutino lhe pendia numa das mãos, enquanto que a outra agora lhe tapava a boca. Então, ainda sem me dirigir a palavra, Cris girou os calcanhares e entrou porta adentro, comungando comigo o mesmo perpétuo silêncio.
Entrei logo atrás dela, que começou a chorar copiosamente encarando alguma notícia no jornal. Vendo que o descontrole nela só aumentava, quis não interferir. Mas era tal a angústia que logo, num acesso de raiva, Cris jogou de forma intempestiva o jornal por sobre uma mesa próxima; com a repulsa o periódico deslizou sobre a superfície, o que lançou com força ao longe um copo cheio de leite que estava ali.
Atônito, a vi correr até o outro lado da sala e apanhar uma mala, para em seguida depositá-la sobre a cama. Agora, Cris parecia chorar com mais desespero. Aquilo tudo me desconcertava e, ainda sem ação, detive-me em vê-la abraçar uma de minhas camisetas. Era marrom, com escrito em tom sobre tom, onde se lia: Hawaii.
Feita a mala, Cris passou por mim, eu que estava agora sentado à mesa. Ela inclinou-se, sobre a mesma algo irritada, ignorando-me por completo. Tinha os olhos no jornal e os cabelos a lhe tapar parcialmente a fisionomia; apanhou as chaves de nosso apartamento e se encaminhou até a porta tatuando os próprios passos no chão com o conteúdo do leite derramado. Ao pé da porta, ela se virou – como se fosse me dizer algo – tentei argumentar, mas não me deu ouvidos. E, um segundo depois, fechou a porta atrás de si.
De minha parte, fui atrás inconformado por não ter conseguido convencê-la a ficar. No entanto, minhas pegadas não me seguiam...
Quando alcancei a rua, Cris, a mulher de minha vida, já entrara no carro, uma caminhonete preta que adquirimos havia pouco tempo. Então, parei diante dela; fitando-a pelo pára-brisa, pude ver que ainda terminava de ajeitar a mala no banco do passageiro. Não pensei duas vezes e corri para a porta do motorista, para tentar dissuadi-la de me deixar. Mas o vidro estava todo erguido. Ela enxugava as lágrimas, ao que levou a chave até a ignição. Ah, e com horror protestei! Esbravejei, esmurrando o vidro da janela ao seu lado.
Ela precisava me ouvir, me dar mais uma chance. Ali, naquele momento, era eu que me desesperava. E, a mulher que deveria me acompanhar por toda uma vida, engatou a marcha e partiu. Tentei segurar o carro com as mãos, todavia, em vão. Mesmo assim, comecei a correr a persegui-la, gritando o seu nome. Cris ainda ajeitou o retrovisor a poucos metros de mim, contudo, parecia não me ver ali, logo atrás, implorando para que voltasse.
Dentro em pouco, ela dobrou a esquina e acelerou. Corri o mais que pude. Esgotei-me. Daí me lembrei que se tomasse um atalho, ainda a encontraria num semáforo mais à frente. Voltei a correr, agora como nunca.
Ao final do atalho, lá estava eu, mas ela passou por mim a toda comigo ainda em seu encalço. E, quanto mais eu me esforçava, mais ela se afastava de mim. Qual não foi a minha surpresa, ao vê-la que não respeitaria o sinal vermelho... Bem diante de mim e de muita gente ali, um caminhão branco, enorme, atingiu o nosso carro em cheio, bem do lado do motorista.
A colisão foi brutal, arrastando a caminhonete por alguns metros; espatifando em muitos cacos o vidro traseiro. Deu para ver os cabelo da Cris, ondulando-se ante a violência do impacto.
Aproximei-me assombrado, perplexo. Eu não podia acreditar no que acabara de acontecer bem diante dos meus olhos. A alguns metros do local do acidente, estanquei meus passos. E, assim como Cris havia feito, momentos antes, no início de nosso encontro, à entrada de nosso apartamento, tapava eu agora a boca com uma das mãos. O gesto assustado e estarrecido, era então copiado por toda a gente que presenciou a cena. Em alguns segundos muitos curiosos queriam ver o estado da passageira e tamparam a minha visão. Em verdade, não conseguia dar mais um passo.
Não obstante, uma luz brilhou de forma intensa, vinda dentre aqueles muitos corpos que se acotovelavam de curiosidade a beira do carro acidentado; no que tomou, inexplicavelmente, a forma da mulher que impregnava de sentido a minha existência.
Cris, atravessando literalmente todas aquelas pessoas, caminhou até mim. Ela estava alegre, como se houvesse encontrado algo que perdera. E, como nada mais importava além de nós dois, abracei-a inundado de amor. Dei-lhe o abraço mais apertado que pude. Queria olhá-la, contemplá-la, achar e me perder naquele momento.
As pessoas ainda saíam de todas as partes e corriam a ver o acidente; quanto a nós, isso pouco importava. Afinal, tínhamos um ao outro agora, por toda a eternidade. Foi quando compreendi, que o homem na foto do jornal, vítima de um trágico acidente ocorrido no dia de ontem, era eu.

N.A.: Caro leitor, esta é uma livre adaptação literária que fiz inspirada no vídeo clip da música: Someday/Banda: Nickelback/The Long Road/Roadrunner Records/ Director: Nigel Dick.


Luciano Borges
Membro da Academia de Letras
e Artes de Barretos — ALAB

Um comentário:

Unknown disse...
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