O Cientista

Abro meus olhos... Tento mexer o pescoço, desencostá-lo do banco do carro. Olho então para o lado do carona e ela não está. Foi quando me dei conta que o pára-brisa também não estava lá; em seu lugar apenas uma pipoca de muitos cacos espalhados não só sobre mim. O teto estava amassado, as portas... Cadê ela?– inquiri-me aflito.
Devia ser umas três da tarde, a luz ainda estava forte apesar do frio que fazia. Abri a porta do carro e desci... Precisava encontrá-la, dizer-lhe que sentia muito... De fato, devido ao meu temperamento fechado, poucas foram as vezes que lhe disse o quanto significa para mim, ou ainda o quanto era amável e se importava comigo. Procurei-a com os olhos uma vez mais; desejava que ela estivesse à procura de ajuda, mas no íntimo temia pelo pior.
Sentia-me um tanto zonzo em pé, e ao pé da porta olhei para a traseira do carro que estava toda destruída. Começava então a me lembrar... Havíamos capotado ribanceira a baixo, foi quando perdi os sentidos preso ao cinto de segurança.
Onde ela estaria, meu Deus! – impacientei-me. Dei alguns passos...
Maria estava caída um pouco à frente do carro, deitada na relva. Detive-me a olhá-la, queria crer que estivesse apenas dormindo. Sua pele branca, seu rosto delicado, sua pouca estatura, cabelos curtos quanto negros em uníssono com a cor de sua jaqueta preferida.
Nem devíamos estar ali, naquele fim de mundo, recordei em febre. Dobrei os joelhos e a aninhei em meu colo. Segurei seu rosto, esfreguei seus pulsos, tudo em vão, Maria estava realmente morta... Seus lábios não continham mais o colorido típico cor de rosa, lívidos, nem eram brancos, nem pretos, mas como um azul desmaiado... Comecei a chorar, uma espécie de convulsão, a princípio como se a minha cabeça estivesse se separado do todo, e pudesse me enxergar do alto num velado silêncio. Naquele instante desejei que o tempo voltasse e que não tivéssemos saído de casa. Viagem de negócios... Maria nem queria ter vindo, mas a sua necessidade de me acompanhar, de estar próxima a impelia a concordar comigo ainda que não desejasse.
Há muito tempo que eu apenas vinha pensando em trabalho. Era o momento mais vivo em minha carreira que jamais experimentara. Em contra partida, não uma, mas inúmeras vezes, ela me disse de sua solidão ainda que estivesse ao meu lado. Ainda assim só conseguia pensar em números, estatísticas, reuniões, em suma, em minha carreira... Não havia mais tempo para os quebra-cabeças de Maria ou de suas homilias sobre os rumos de nossa relação, devido as minhas constantes ausências.
E agora, Meu Deus!!!! O que vou fazer sem ela?! Que me importa as questões de ciência? Ciência e progresso não falam tão alto quanto o meu coração... Abraçando o seu corpo inerte, quis que me dissesse de seu amor uma vez mais. Palavras que certamente não me negaria, assim com a um sorriso terno, meio zombeteiro, quase infantil.
Volte... Volte, Maria, e me assombre – desejei.
Num movimento brusco, acordo! Seria sonho. Maria estaria viva e bem? Levantei-me sobressaltado com a possibilidade e fui correndo até a garagem, ligando todas as luzes da casa durante o caminho. Ao abrir a porta pude constatar que o nosso carro realmente estava lá. Não obstante, colorido de um negro tão profundo quanto à noite lá fora, e, em algumas partes, retorcido tal qual o meu coração. O carro ainda estava lá, menos o pára-brisa, o pára-choque, os retrovisores...
Não. Não foi apenas um sonho ruim. Maria não mais voltaria àquela casa. Ela realmente havia ficado deitada na relva, depois de ter sido lançada para fora do carro, vindo a atravessar o pára-brisa... Uma vez que no momento do acidente não usava o cinto de segurança.
Desolado, fechei a porta da garagem e voltei solitário para a cama pensando no caminhão que cortou nossas vidas. Imaginando que aquele homem branco com chapéu de caubói ao volante, um João, um Jorge, ou Carlão “da vida”, nem tenha remorso algum pelo mal que ajudara a causar dirigindo fora de sua faixa. Talvez ele sequer saiba. Pois provavelmente a sua embriagues tenha lhe bloqueado a curiosidade de olhar pelo retrovisor com o intuito de ver o que diabos havia acontecido com aquele carro preto, que por muito pouco não colidiu frontalmente com ele. O fato é que ele não voltou para ver o que nos aconteceu. E por essa razão, por saber que socorro algum apareceria, tive que me separar de Maria de forma vergonhosa. Deixá-la como se estivesse dormindo.
Lembro que corri como um louco, por entre árvores, por entre trilhos de uma estrada de ferro, por entre pessoas jogando distraidamente uma partida de basquete; gente que sequer podiam imaginar um décimo do horror que vivia naquele dia.
Ninguém disse que era fácil suportar tanta dor. Mas, quanta dor ainda posso agüentar? E por quantos dias ainda vou desejar que tudo volte a ser como era? Vivo dias que se arrastam, e com alguma culpa pela maneira que me separei de Maria; dias que me vejo correndo em círculos, revivendo a todo o momento aquela ínfima ação que Maria teve: a de vestir a sua bela jaqueta e não voltar mais a colocar o cinto de segurança.
O fato é... que se eu pudesse voltar ao começo... insistiria que ela recolocasse o cinto (Pense e reflita).


N.A.: Caro leitor, esta é uma livre adaptação literária que fiz inspirada no vídeo clip da música: The Scientist/Banda: Coldplay

Luciano Borges
Membro da Academia de Letras
e Artes de Barretos

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