Nunca Aceite Ajuda de Estranhos

Depois de Gabriel Garcia Marques com o seu “Memórias de minhas putas tristes”, agora me enveredo na leitura do livro “Ensaio sobre a cegueira” do escritor português José Saramago. Nem havia passado da primeira página ainda, quando entrou porta adentro minha esposa dizendo que tivera uma experiência não muita agradável naquele dia. Deixei o livro de lado e me acomodei melhor no sofá. Não passava ainda das sete da noite e o ventilador do teto não estava ligado em razão da temperatura amena que fazia. Priscila olhava diretamente para mim quando começou a narrativa.
Disse-me que naquela mesma tarde havia ido a um banco no centro, a pedido de sua chefe de setor (a propósito, minha esposa é técnica de enfermagem e universitária do mesmo curso). Até aí tudo bem porque não lhe custaria nada o favor. Ela tinha algumas contas a pagar mesmo.
O banco estava apinhado de gente como sempre. Priscila retirou o bilhete-senha na máquina à direita, logo após a porta eletrônica, e sentou-se com os olhos grudados no luminoso. E entre um apito e outro, que chamava os clientes até o caixa, notou que um homem na casa de seus cinquenta anos, com dificuldades para andar, uma vez que mancava um pouco, já saía do caixa reservado a idosos em razão do seu atendimento já concluído. Mas, qual não foi a surpresa de minha mulher, quando deu por si que o referido senhor, sujeito claro, de olhos azuis, depois de um breve sumiço, estava parado num canto, apreciando o movimento. Mais espantada ainda ficou Priscila no momento em que este homem de meia-idade veio falar com ela. Perguntou-lhe sobre o que ela veio fazer no banco. Minha esposa achou a abordagem um tanto quanto estranha, mas, educada como sempre, respondeu que precisava descontar um cheque. De quanto é o valor, perguntou ele. Cinquenta e três reais, respondeu ela. Façamos o seguinte, atalhou o bem apessoado senhor, você me dá a sua senha para que eu possa chegar logo ao caixa, uma vez que esqueci de pagar uma conta minha, e eu lhe dou em dinheiro o valor do cheque. Assim você e eu não precisamos ficar muito tempo aqui nesta fila. O que acha? Aqui está o dinheiro. Pode conferi-lo, não é falso não. Minha esposa conferiu o dinheiro, reconhecendo que o mesmo não o era de fato; porque analisou a textura da cédula, marca d’água, enfim, tudo que aprendera há tempos sobre o assunto. Disse para si mesma que não haveria mal algum em fazer o negócio. E, aceitando a ajuda do estranho, entregou-lhe o cheque.
Algumas horas depois, a chefe de minha esposa estava ao telefone perguntando se e para quem ela havia passado o cheque... Simplesmente, porque alguém havia adulterado o cheque, mudando o valor de míseros cinquenta e três, para o auspicioso valor de novecentos e oitenta reais – pagos pelo banco ao meliante, 171. Ocasionando prejuízo financeiro, além de uma saia justíssima.
A acompanhei à delegacia da av. 17 para que pudesse verificar se encontrava nas inúmeras fotos do arquivo, o rosto que àquela altura não saía da mente de Priscila. Desnecessário dizer que foi em vão. Além do fato de concluirmos, atordoados, que do arquivo em questão a maioria das fotos era de menores. Segundo pesquisa recente da FGV e do MEC, os nossos jovens não abandonam os estudos pelo interesse em trabalhar, mas unicamente pelo desinteresse na escola tal qual a conhecemos.
Assim, aqui fica registrado mais um dia em que o fino trato e uma lógica destorcida, obtiveram vantagem ilícita, com prejuízo alheio, induzindo ao erro minha esposa, que foi vítima de um ardiloso artifício.

Luciano Borges / Escritor e Professor

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